Existe Amizade de Baixa Manutenção?
- Douglas Barboza
- 5 de fev.
- 5 min de leitura
Existem alguns temas que sempre acabam aparecendo na internet e gerando discussões sem fim. E geralmente isso é uma coisa cíclica. Bom, o tema da vez é um que faz um tempinho que eu venho tendo vontade de gravar ou escrever sobre.
Você já ouviu falar de “amizade de baixa manutenção”? Se não ouviu, vou tentar explicar de forma bem rápida com base nas minhas próprias interações e com o que vi na internet:
Sabe aquele amigo ou amiga que você talvez até já tenha tido um contato muito próximo no passado, mas que hoje em dia essas interações acabaram se tornando um pouco mais superficiais? Que vocês sabem mais da vida um do outro através dos stories do que genuinamente conversando? Mas que ainda assim possuem uma grande consideração e nas oportunidades que possuem de conversar, seja por redes sociais ou em algum evento que se encontram, a sensação é de que nada mudou e a amizade é a mesma, afinal a consideração é a mesma e o sentimento de que, se você precisar, esse amigo estará lá não mudou? Então, essa seria uma das possíveis definições para o que foi batizado na internet como “amizade de baixa manutenção”.
Sobre o termo em si, tentei procurar na internet quando começou a ser utilizado e aparentemente a sua popularização se iniciou em meados de 2015 a 2016 e teve um boom depois de 2020, curiosamente, o ano em que as nossas relações foram abaladas completamente com o contexto da pandemia de Covid-19.
Navegando um pouco na internet, é possível ver que existem algumas percepções diferentes sobre esse tema, inclusive em relação a idade ou geração das pessoas que estão abordando o mesmo:
De um lado, existe uma perspectiva de que as relações hoje acontecem de forma mais “superficial” por assim dizer por conta da famosa “correria da vida”, seja ela na escola, faculdade ou trabalho, onde é impossível manter os relacionamentos de amizade e dar conta da rotina e das exigências de ser uma pessoa funcional.
Já do outro lado, a perspectiva é de que essa expressão foi criada como forma de descrever o que eu disse acima, mas que agora serve principalmente para reforçar um comportamento de negligenciar as relações, onde as amizades genuínas não são vistas como uma prioridade ou algo que valha a pena se investir tempo e, por que não, esforço ativo. Dessa forma, dizer que é uma pessoa que prefere amizades de baixa manutenção seria uma maneira egoísta de se posicionar, já abaixando as expectativas das pessoas com quem se relaciona.
Mas e aí? Quais dessas duas perspectivas estão certas?
Essa é uma pergunta engraçada de se fazer, porque a resposta é a de sempre: depende. E eu não faço de propósito, faz parte. Depende mesmo, juro.
Primeiro, é preciso sempre reforçar, por mais clichê que possa parecer, que os nossos relacionamentos, todos eles, não só os de amizade, mas também os relacionamentos com familiares, relacionamentos amorosos, com colegas de escola, faculdade, trabalho, estão dentro de um contexto que sim, está permeado por um modo de vida que estimula o individualismo. Ou seja, se é necessário que estejamos sempre ocupados, realizando tarefas durante o tempo para que não falhemos nas nossas missões diárias de vida envolvendo a nossa sobrevivência (sim) e possível melhoria na vida, seja ela financeira ou em outros aspectos. Dentro dessa lógica, acaba sendo realmente impossível fazer tudo que gostaríamos dentro das 24 horas que temos em cada dia. E isso não é diferente com a dita “manutenção” das nossas amizades.
Aliás, queria puxar um parêntese de que acho muito interessante a escolha desse termo: “manutenção”. Sem nem perceber a gente também acaba utilizando a lógica da produtividade para explicar os nossos aspectos mais humanos. Afinal, quando você compra um produto e ele é de baixa manutenção, significa que é um produto bom, que você não precisa se preocupar.
Já quando algo é considerado de alta manutenção, é porque dá trabalho, dor de cabeça e tudo mais.
Bom, voltando um pouquinho, embora nós realmente vivamos nesse mundo que “exige” que a gente não priorize determinados aspectos da vida, eu gostaria de trazer algumas reflexões sobre o que acabei de falar, que é a questão da alta manutenção:
Muito da cristalização dessa expressão criada sobre as “amizades de baixa manutenção” veio junto com uma explicação do que não se é esperado, do oposto, que seriam as amizades que “dão trabalho”. E, o que caracterizaria essas relações? Muitas das vezes as respostas para isso trarão a ideia de pessoas ditas problemáticas, seja elas mesquinhas, egoístas ou até mesmo dramáticas. Que precisam de contato diário ou que fazem drama quando suas mensagens não respondidas em tempo recorde no WhatsApp. Que o ideal é que ninguém seja “carente” nesse mundo onde todo mundo precisa ser muito resolvido e autossuficiente, porque não dá tempo de lidar com esse tipo de bobagem.
E aqui eu estou propositalmente generalizando o discurso porque há sim uma tendência de que ele chegue nesses extremos onde o outro começa a ser desumanizado nessa relação utilitarista da vida: eu sou uma amizade de baixa manutenção porque eu não dou trabalho, eu estou lá se precisarem de mim, mas todo mundo está muito atarefado e está tudo bem. Fulano não, está sempre com problemas, sempre precisa de alguém o ajudando, é carente e cobra muito das amizades.
Bem, existem algumas características de transtornos como a depressão ou ansiedade, por exemplo, que podem passar despercebidos nesse tipo de atribuição de valor que criado dentro dessa temática. Um amigo que deixa de aparecer, que some, por assim dizer, mas que você sabe “que está lá”, pode estar passando por situações que você não sabe, mas que ‘se ele precisar, ele sabe que pode contar com você’, e, sendo muito honesto, não, não é assim que funciona.
O contrário também é real, tal pessoa pode estar parecendo mais dramática, sendo sensível, aparentando ser carente e... novamente, as coisas talvez não possam ser explicadas de forma tão simplista.
Por fim, a minha intenção aqui não é patologizar características que às vezes vão fazer parte da personalidade das pessoas. Existem, sim, pessoas mais carentes, mais ou menos sociáveis, pessoas extrovertidas, introvertidas, enfim... O meu convite a reflexão é mais voltado para como nós chegamos em um ponto onde normalizar a falta de cuidado porque é cada vez mais difícil até mesmo refletir sobre esse cuidado, se tornou a resposta para o crescimento gigantesco do individualismo que passa a cada vez mais perpetuar a nossa relação com o mundo e com nós mesmos. Expressões como essas, que surgem na internet para descrever situações muitas vezes cotidianas, parecem ganhar certo tipo de tração a começarem a justificar comportamentos e formas de se relacionar cada vez mais comuns e que cada vez mais estão conectadas com uma vida solitária.
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